procida 2022

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A cultura não ilha

portoghese / la cultura non isola

A ilha é uma porção de terra que nasce do mar; o mar protege-a, separa-a e exclui-a dos continentes, cuja terra, firme e vasta, é tomada por mil acontecimentos e deslocamentos que a manipulam, a corrompem e a envelhecem.

A terra insular é líquida, cingida. Pode ser novamente habitada e renovada. Pode ser um mundo no mundo, com regras próprias. Pensemos na Atlântida, na Utopia ou na ilha de Robinson Crusoe.

Quantas ilhas e quantas utopias emergem e desaparecem ao longo dos tempos? O filósofo Jacques Derrida escreve: «O que é uma ilha? Não há mundo, há apenas ilhas». Pensar na ilha, leva-nos a repensar o mundo que experimentamos, tornando a ilha síntese, metáfora, projeto e rebeldia dele.

Portanto, a ilha é espaço e modelo. As suas feições físicas não são só geográficas ou naturais, como também vestígios do artifício e da cultura do ser humano. Por isso, a ilha é espaço de exploração, experimentação e conhecimento, é modelo das culturas contemporâneas. Ao guardar os significados da existência, ainda assim se envolve nos processos de construção/des-construção identitária, de abandono/distância, de perda e de construção de laços: a ilha é ameaça de separação e desterro; a ilha é oportunidade de início e refundação, redescoberta e regeneração, de antigo e novo; a ilha é o algures por excelência, oculta tesouros ou é destino de fuga, estratégia para a busca da felicidade.

Avistada ao longe, a ilha é o espelho do que somos, é a forma originária que nos agita e nos move. Michel Tournier compara a ilha às diástoles e sístoles do coração humano, à dilatação e à contração. É o círculo mágico que cinge e protege. Um espaço seguro, totalmente acabado, ovo cósmico ou até jardim do Paraíso. A ilha, núcleo cercado pelo mar amniótico, é símbolo materno, “regresso ao útero”: a cultura do feminino/materno, reinterpretada em termos de generatividade cultural, é portadora de uma particular atitude para com o humano. Acolhimento, compaixão, proteção, cuidado, dádiva, ligação à vida são as condições imprescindíveis da cultura da diferença que queremos partilhar com o nosso programa cultural.

A ilha é, no entanto, também espaço mental. É o pensamento que ganha forma e emerge de profundezas insondáveis, obscuras, cheias de vida: “As ilhas são como as ideias. Desertas, encantadoras. Funcionam como reservas, capturam as estórias e abrigam os seres humanos desde a criação do primeiro poema” (Maylis de Kerangal).

A ilha é imagem, símbolo, ideia. Contudo, é um espaço concreto e carnal, dominado pelos fluxos das suas relações, pela encruzilhada de chegadas e partidas: “Despedimo-nos dela, chegamos até ela. Ela convida-nos a atravessarmos o mar que a rodeia, a tocarmos outras terras” (Jean-Luc Nancy). A ilha é de facto permeável, aberta.

Estudar a complexidade do imaginário da ilha significa descobrir as raízes míticas e arcaicas de cada construção racional: significa também projetar numa imagem-espaço tudo o que deve ser reformulado e recusado: a reclusão, a armadilha, o angustiante mistério.

A ilha é reino de duplos: abertura/fechamento, acolhimento/exclusão, liberdade/reclusão, ligação/distância. Dualidades identitárias a serem desenvolvidas e tratadas no programa cultural de Procida Capital Italiana da Cultura a decorrer em 2021, colhendo a oportunidade de trabalhar a ilha como perspetiva privilegiada para experimentar as contínuas contradições, a eterna luta entre o sentimento de pertença e a necessidade de declarar a própria diferença.

As experiências que emergem na ilha e a partir dela, acompanhando e guiando o processo da candidatura, desenvolvem uma cartografia de factos e eventos: ponto após ponto, nenhum espaço imaginário e ficcional alcança consistência real, se deixa encontrar e descobrir. No cenário e nos espaços insulares implantam-se laboratórios de vida quotidiana, os elementos da natureza e a expressividade cultural representam a ferramenta de um projeto humano envolvente.

Os projetos têm dois níveis de exploração. No primeiro nível, horizontal, descrevem a superfície criativa da ilha como tal, com o ciclo das suas manifestações vitais e culturais. Esse itinerário, todavia, tem uma profundeza vertical que se torna uma autêntica viagem, uma miniatura do potencial contemporâneo onde a ideia de progresso científico e tecnológico coloca o ser humano no centro da sua memória e, por conseguinte, da sua capacidade de construir o futuro, desenvolvendo nele a consciência de ser habitante e não mera paisagem.